sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Carta a um poeta

Meu caro poeta,

Por um lado foi bom que me tivesses pedido resposta urgente, senão eu jamais escreveria sobre o assunto desta, pois não possuo o dom discursivo e expositivo, vindo daí a dificuldade que sempre tive de escrever em prosa. A prosa não tem margens, nunca se sabe quando, como e onde parar. O poema, não; descreve uma parábola tracada pelo próprio impulso (ritmo); é que nem um grito. Todo poema é, para mim, uma interjeição ampliada; algo de instintivo, carregado de emoção. Com isso não quero dizer que o poema seja uma descarga emotiva, como o fariam os românticos. Deve, sim, trazer uma carga emocional, uma espécie de radioatividade, cuja duração só o tempo dirá. Por isso há versos de Camões que nos abalam tanto até hoje e há versos de hoje que os pósteros lerão com aquela cara com que lemos os de Filinto Elísio. Aliás, a posteridade é muito comprida: me dá sono. Escrever com o olho na posteridade é tão absurdo como escreveres para os súditos de Ramsés II, ou para o próprio Ramsés, se fores palaciano. Quanto a escrever para os contemporâneos, está muito bem, mas como é que vais saber quem são os teus contemporâneos? A única contemporaneidade que existe é a da contingência política e social, porque estamos mergulhados nela, mas isto compete melhor aos discursivos e expositivos , aos oradores e catedráticos. Que sobra então para a poesia? - perguntarás. E eu te respondo que sobras tu. Achas pouco? Não me refiro à tua pessoa, refiro-me ao teu eu, que transcende os teus limites pessoais, mergulhando no humano. O Profeta diz a todos: "eu vos trago a verdade", enquanto o poeta, mais humildemente, se limita a dizer a cada um: "eu te trago a minha verdade." E o poeta, quanto mais individual, mais universal, pois cada homem, qualquer que seja o condicionamento do meio e e da época, só vem a compreender e amar o que é essencialmente humano. Embora, eu que o diga, seja tão difícil ser assim autêntico. Às vezes assalta-me o terror de que todos os meus poemas sejam apócritos!

Meu poeta, se estas linhas estão te aborrecendo é porque és poeta mesmo. Modéstia à parte, as disgressões sobre poesia sempre me causaram tédio e perplexidade. A culpa é tua, que me pediste conselho e me colocas na insustentável situação em que me vejo quando essas meninas dos colégios vêm (por inocência ou maldade dos professores) fazer pesquisas com perguntas assim: "O que é poesia? Por que se tornou poeta? Como escrevem os seus poemas?" A poesia é dessas coisas que a gente faz mas não diz.

A poesia é um fato consumado, não se discute; perguntas-me, no entanto, que orientação de trabalho seguir e que poetas deves ler. Eu tinha vontade de ser um grande poeta para te dizer como é que eles fazem. Só te posso dizer o que eu faço. Não sei como vem um poema. Às vezes uma palavra, uma frase ouvida, uma repentina imagem que me ocorre em qualquer parte, nas ocasiões mais insólitas. A esta imagem respondem outras. Por vezes uma rima até ajuda, com o inesperado da sua associação. (Em vez de associações de idéias, associações de imagem; creio ter sido esta a verdadeira conquista da poesia moderna.) Não lhes oponho trancas nem barreiras. Vai tudo para o papel. Guardo o papel, até que um dia o releio, já esquecido de tudo (a falta de memória é uma bênção nestes casos). Vem logo o trabalho de corte, pois noto logo o que estava demais ou o que era falso. Coisas que pareciam tão bonitinhas, mas que eram puro enfeite, coisas que eram puro desenvolvimento lógico (um poema não é um teorema) tudo isso eu deito abaixo, até ficar o essencial, isto é, o poema. Um poema tanto mais belo é quanto mais parecido for com o cavalo. Por não ter nada de mais nem nada de menos é que o cavalo é o mais belo ser da Criação.

Como vês, para isso é preciso uma luta constante. A minha está durando a vida inteira. O desfecho é sempre incerto. Sinto-me capaz de fazer um poema tão bom ou tão ruinzinho como aos 17 anos. Há na Bíblia uma passagem que não sei que sentido lhe darão os teólogos; é quando Jacob entra em luta com um anjo e lhe diz: "Eu não te largarei até que me abençoes". Pois bem, haverá coisa melhor para indicar a luta do poeta com o poema? Não me perguntes, porém, a técninca dessa luta sagrada ou sacrílega. Cada poeta tem de descobrir, lutando, os seus próprios recursos. Só te digo que deves desconfiar dos truques da moda, que, quando muito, podem enganar o público e trazer-te uma efêmera popularidade.

Em todo caso, bem sabes que existe a métrica. Eu tive a vantagem de nascer numa época em que só se podia poetar dentro dos moldes clássicos. Era preciso ajustar as palavras naqueles moldes, obedecer àquelas rimas. Uma bela ginástica, meu poeta, que muitos de hoje acham ingenuamente desnecessária. Mas, da mesma forma que a gente primeiro aprendia nos cadernos de caligrafia para depois, com o tempo, adquirir uma letra própria, espelho grafológico da sua individualidade, eu na verdade te digo que só tem capacidade e moral para criar um ritmo livre quem for capaz de escrever um soneto clássico. Verás com o tempo que cada poema, aliás, impõe sua forma; uns, as canções, já vêm dançando, com as rimas de mãos dadas, outros, os dionisíacos (ou histriônicos, como queiras) até parecem aqualoucos. E um conselho, afinal: não cortes demais (um poema não é um esquema); eu próprio que tanto te recomendei a contenção, às vezes me distendo, me largo num poema que vai lá seguindo com os detritos, como um rio de enchente, e que me faz bem, porque o espreguiçamento é também uma ginástica. Desculpa se tudo isso é uma coisa óbvia; mas para muitos, que tu conheces, ainda não é; mostra-lhes, pois, estas linhas.

Agora, que poetas deves ler? Simplesmente os poetas de que gostares e eles assim te ajudarão a compreender-te, em vez de tu a eles. São os únicos que te convêm, pois cada um só gosta de quem se parece consigo. Já escrevi, e repito: o que chamam de influência poética é apenas confluência. Já li poetas de renome universal e, mais grave ainda, de renome nacional, e que no entanto me deixaram indiferente. De quem a culpa? De ninguém. É que não eram da minha família.

Enfim, meu poeta, trabalhe, trabalhe em seus versos e em você mesmo e apareça-me daqui a vinte anos. Combinado?

Mario Quintana


(Quarto do poeta, Casa Mario Quintana - Porto Alegre/RS)

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Novos críticos e curadores lembrando a poesia surrealista




Esqueleto Delicado Ressuscitado

Viva a vaia
A lua está cheia
A nau dos insensatos leva seres sem cabeça...
E ali permanece até hoje
é gordo e cremoso;
mas nem sempre é assim.
Num dia de sol, a lua estará brilhante
Participação do espectador
Arte é movimento
um sonho...
e no fim, tudo virou conceitual.


Ana Amália Alves, Arlete de Oliveira, Fabiana Sciarotta, Fabiane Nielebock, Fernanda Vieira, Gabriela Oliveira, Jefferson Campos, Thaís Hoffmann, Wagner Lungov, Zinia Carvalho.

Poema elaborado a partir da proposta de Mônica Rodrigues da Costa na aula de Arte Contemporânea e Poéticas Experimentais. Especialização em Arte: Crítica e Curadoria. PUC-SP.

terça-feira, 31 de maio de 2011

1a curadoria: Hilda Hilst

Como estamos no mês dos namorados, nada mais propício e clichê que falar do amor.
Esses poemas de Hilda Hilst vão além. Musicados por Zeca Baleiro, ficaram lindos.

I

É bom que seja assim, Dionísio,
que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora

E sozinha supor
Que se estivesses dentro

Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora

Eu jamais ouvira. Atento
meu ouvido escutaria
o sumo do teu canto. Que não venhas,
Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
se fazendo de tua sábia ausência.

_________________________________


II

Porque tu sabes que é de poesia
Minha vida secreta. Tu sabes,
Dionísio,
Que a teu lado te amando,
Antes de ser mulher sou inteira
poeta.
E que o teu corpo existe porque o
meu
Sempre existiu cantando.
Meu corpo, Dionísio,
É que move o grande corpo teu

Ainda que tu me vejas extrema e
suplicante
Quando amanhece e me dizes adeus.


(In: Júbilo memória noviciado da paixão, 1974, Globo Editora)

domingo, 15 de maio de 2011

Curadorias

Após quase dois meses sem post, volto com a novidade: estou criando curadorias poéticas. A cada mês teremos uma.

Aguardem! (E mandem sugestões!)

segunda-feira, 21 de março de 2011

21 de março: Dia Mundial da Poesia

"As poetry reaches deeply into the innermost efforts of men and women to create and reflect, it has the capacity to sustain dialogue amid the diversity of human expression".

In: Message from Irina Bokova, Director-General of UNESCO, on the occasion of the World Poetry Day, 21 March 2011

sexta-feira, 4 de março de 2011

Homenagem a Augusto de Campos, 80

Augusto de Campos fez 80 anos. A revista Errática apresenta uma comemoração multimidiática com vários artistas:

http://erratica.com.br/opus/104/index.html

Eucanaã Ferraz

De ti

Já não recorro às fotografias
- perfil, pose, paisagem -

como o cego ao cão
que fia o caminho.

Deixei que os dias
- outro cão, todo dentes -

te devorassem
os arames nítidos do foco.

Fiquei com o que sei
de cor

- outro cão, em mim,
garra e faro -

no extremo
dos meus dedos.

(In: Rua do mundo - Companhia das Letras,2004)